iPhone

6 06America/Sao_Paulo novembro 06America/Sao_Paulo 2013

Às vezes ser classe média e apoiador da causa dos oprimidos gera sensações incômodas, contraditórias, possíveis somente em uma sociedade de classes.

Uma delas surge quando você desembolsa mais de um milhar de reais em um smartphone produzido em uma fábrica símbolo da exploração desumana do trabalhador/trabalhadora. É preciso muitos debates internos consigo próprio para se convencer de que o ato de consumir sempre irá alimentar uma cadeia de consumo invariavelmente perversa – e que portanto você não está sendo um hipócrita, apenas está reduzido à figura de um consumidor impotente. Não há tabu maior para um crítico do sistema do que a coerência.

Uma outra surge quando você perde esse mesmo smartphone durante uma manifestação de sem-teto a qual você se dispôs a acompanhar espontaneamente, imbuído do mais puro altruísmo. E o perde justamente após alguns dos manifestantes se voltarem contra você, te hostilizarem, e, por fim, tomarem seu aparelho depois que você correu em fuga e o deixou cair sem querer.

É preciso confessar: uma das primeiras sensações que te assaltam, após o remorso (“R$2.000 no lixo!”), é a raiva. Mas é aí que a convicção ideológica construída há anos precisa entrar em ação com o nobre objetivo de neutralizar o ódio de classe, que tende a despertar nesses momentos. Tem-se então o início de uma batalha interna entre razão e fígado, e a tal da sensação incômoda e contraditória passa a se espalhar pelo resto do corpo.

Não se trata de uma batalha perdida, porém. Já disse que coerência é um dos grandes tabus para um crítico do sistema, e justamente por sê-la, a razão tende a se impor.

Ajuda acreditar, por exemplo, que a pobreza é um grande fator de incentivo para que os seres humanos se tornem violentos. Que ela é ainda mais decisiva se, no meio onde vivem, a desigualdade social seja brutal, com bolsões de riqueza cruzando por savanas de pobreza a todo momento. Que enquanto “perdi um smartphone, quem o tomou está perdendo sua casa.” É um raciocínio que acalma, em mais de um sentido. Elaborar o luto, porém, leva tempo.

Para além de tudo isso, e já enveredando por uma reflexão que pertence ao mundo dos otimistas, ajuda a pensar que talvez não tenha sido só o meu smartphone que me foi subtraído – mas também uma preocupação. Afinal, bastava pôr os pés na rua, ao alcance do “povo”, para que o receio inato do crime ganhasse corpo, apenas pelo fato de se estar com um smartphone de “estirpe” no bolso.

Pois bem. Talvez agora não possa mais atualizar meu Instagram. Mas talvez agora, mesmo subtraído, possa andar por aí um pouco mais despreocupado.