Resenha de “Vinte Centavos: a luta contra o aumento”

25 25America/Sao_Paulo novembro 25America/Sao_Paulo 2013

vinte centavos

Interpretar um fato histórico, medindo seu grau de importância, é um exercício feito em marcos relativos, uma vez que a análise do fato histórico em questão deve se dar em relação aos seus desdobramentos na sociedade. E, obviamente, é preciso que o tempo passe para que estes desdobramentos ocorram. É preciso o tal “distanciamento temporal”, que não costuma ser medido em semanas ou meses, mas muitas vezes em décadas.

Peguemos as Jornadas de Junho: não restam dúvidas de que se trata de um fato histórico para o Brasil, cujo enredo os livros de História vindouros se incumbirão de narrar. Mas a verdade é que ainda não sabemos exatamente qual sua importância histórica, mesmo com cinco meses passados. Já é possível de se ler por aí, por exemplo, que com as Jornadas de Junho abriu-se um processo revolucionário no país. Soa a uma análise super-dimensionada, mas vai saber: só mesmo o tempo poderá nos dizer.

Sabiamente, o livro “Vinte Centavos: a luta contra o aumento”, lançado em outubro pela editora Veneta, foge da tentativa de interpretar historicamente as Jornadas de Junho. Na verdade, ele se constrói muito mais como uma obra documental, oferecendo-se como um subsídio para futuras análises históricas do fato. Faz isso na medida em que compila os acontecimentos mais importantes do período entre 6 e 19 de junho – datas respectivamente do primeiro grande ato chamado pelo MPL (Movimento Passe Livre) e da revogação dos aumentos das passagens de ônibus, trens e metrô em São Paulo.

Todos os cinco protestos e seus efeitos imediatos são descritos em ordem cronológica, sempre se guiando por uma série incansável de citações. Estas abrangem editoriais de jornais, textos de articulistas, notas públicas do MPL, pronunciamentos oficiais do poder público, discursos de vereadores, trechos de entrevistas, entre vários outros. Em determinados momentos, a sequência de citações de conteúdo muito semelhante, em que só se alternam os autores, dota o livro de certa monotonia, sobretudo se o leitor já estiver bem familiarizado com o tema. Mas como o propósito da obra é essencialmente documental, trata-se de um mal necessário.

Algo interessante de se notar é que, ao colocar os acontecimentos de junho em perspectiva, o livro acaba cumprindo a tarefa de explicitar o comportamento político da grande imprensa de forma extremamente pedagógica. É possível perceber exatamente quando se dá a mudança de tratamento das manifestações, das quais no início eram destacados apenas os atos de vandalismo. Na medida em que as manifestações se massificam pelo país, surgindo a oportunidade de direcioná-las contra o governo federal, a grande imprensa opta por uma clivagem: surge o termo “vândalos”, usado a esmo por repórteres e apresentadores de telejornais para distinguir aqueles dos “manifestantes” – estes, os verdadeiros portadores do espírito cívico e que estão protestando por um país melhor.

Mas ainda que a proposta seja documental, “Vinte Centavos” traz também duas boas análises.

Logo no início, há um texto de Marcelo Pomar, principal figura pública do MPL de Florianópolis, cidade berço do movimento. Pomar faz um resgate histórico das lutas pelo transporte público desde 2003, ano da Revolta do Buzu, em Salvador. A partir de então, narra uma sucessão de eventos que acabaram por forjar o MPL de hoje, explicando ainda como a demanda pelo passe livre estudantil amadureceu ao longo do tempo, passando a compreender o transporte público como um direito social do mesmo patamar que áreas como saúde e a educação – e, portanto, passível de ser usufruído livremente e com garantias de qualidade de serviço.

A outra análise fica por conta de Pablo Ortellado, que, no fim do livro, reflete sobre a mutação dos métodos das lutas sociais. Diz Ortellado que durante as lutas dos movimentos contra a liberalização econômica (chamados por alguns de “alter-mundialistas” e pela grande imprensa de “anti-globalização”) nos fins dos anos 90, início dos 2000, consolida-se uma inversão de valores. Os resultados deixam de ser o foco principal da luta, que acaba auferindo mais importância ao processo para se obtê-los.

Em outras palavras, o mais importante não era conseguir obrigar o governo a atender esta ou aquela demanda, mas sim que o movimento se comportasse de maneira radicalmente horizontal e autônoma. No caso das Jornadas de Junho, Ortellado aponta uma novidade no período histórico: o fato de que o MPL uniu a valorização do processo (ter feito uma luta sem líderes e de maneira horizontal) com a do resultado (a obtenção da revogação do aumento).

Por fim, é importante ressaltar que, muito mais que uma tarefa acadêmica, “Vinte centavos” mostra-se como um trabalho militante ao se apresentar como depositário da memória de uma jornada de lutas. E reside aí o grande mérito da obra, uma vez que servirá como uma boa referência para a elaboração de futuras reflexões teóricas pela esquerda militante.

Com isso, o livro busca romper uma inércia indesejável existente hoje no Brasil: a da produção insuficiente de conhecimento sobre as lutas populares. O próprio Pablo Ortellado não raro aponta para a existência dessa lacuna, que urge ser preenchida.

Pois que “Vinte Centavos” ajude a fortalecer essa tradição entre os intelectuais militantes, impulsionando o surgimento de novas obras sobre as lutas em nosso país nos próximos tempos.


Biciclé

17 17America/Sao_Paulo novembro 17America/Sao_Paulo 2013

A bicicleta que traz consigo a endorfina, que traz consigo a possibilidade mútua da conversa, da vivência de tempos remotos, do resgate da memória perdida, do reencontro, do esforço físico, da respiração ofegante, da velocidade, do sorriso, do cansaço.

Basta encher o pneu e pedalar. E depois não há mais obstáculos. Pois o que haverá a partir de então serão apenas descidas, ainda que muitas subidas hajam.

Serão apenas descidas. Apenas.

bicicleta

 


Um delírio jornalístico

9 09America/Sao_Paulo novembro 09America/Sao_Paulo 2013

Ainda não a li a reportagem, mas a capa já diz muito.

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No afã de sair-se com um furo jornalístico, a revista Época distorce a realidade e confunde seus leitores. Tudo porque busca retratar os Black Blocs como uma espécie de Guerrilha do Araguaia, em que militantes são treinados em uma base clandestina e despesas organizacionais são arcadas por financiamento vindo do estrangeiro.

Texto da chamada de capa:

“Época testemunhou o treinamento de ativistas que promovem protestos violentos – e revela quem eles são, como se organizam e quem os financiam”

Trecho da reportagem disponível em seu site:

“Em um sítio no interior de São Paulo, pouco mais de 30 pessoas se reuniram, no fim de semana do Dia dos Finados, para organizar uma nova onda de protestos contra tudo e contra todos. O local se tornou um centro de treinamento para uma minoria que adotou o quebra-quebra como forma de manifestação política e ficou conhecida como Black Bloc . O repórter Leonel Rocha testemunhou as reuniões e relata na edição de ÉPOCA desta semana que, ao contrário do que afirmam órgãos de segurança federais e estaduais, eles não são manifestantes que aparecem nos protestos “do nada”, sem organização. Os Black Blocs têm método, objetivos, um programa de atuação e, segundo afirmaram, acesso a financiamento de entidades estrangeiras.”

Não duvido que a história relatada na reportagem seja verdade, que essas pessoas existam e que atuem dentro da tática Black Bloc. Mas a julgar pelo seu trecho inicial, e ainda pelo apelativo texto de chamada da capa, a impressão é que estamos diante de um grupo com comando centralizado, de natureza paramilitar, calcado na conspiração. Errado.

Para quem já acompanhou algumas manifestações com Black Blocs, e ainda teve contato com um mínimo de textos sérios a respeito, é impossível não enxergar traços de falácia nesse tipo de abordagem.

Mais que uma organização, o “Black Bloc” é uma marca que carrega consigo uma filosofia de ação durante manifestações – fundamentalmente, a do ataque ao patrimônio que simboliza o capitalismo. Não há centralização de comando, não há articulação rígida entre os vários black blocs que atuam em manifestações pelo país. O que verdadeiramente há são grupos de afinidade que se unem sob a marca, sob a filosofia, sob a estética da máscara negra. Todos elementos que servirão de norte durante atos de rua.

Pode soar estranho, mas sempre quando me pego refletindo sobre a natureza do Black Bloc meus pensamentos acabam recaindo sobre o modus operandi da Al Qaeda. Ao contrário do que gostam de dizer os meios de comunicação hegemônicos, trata-se de outra “““organização””” que  está mais para uma marca, uma filosofia, que é adotada por grupos jihadistas mundo afora, do que para uma organização estritamente hierarquizada, sob a chefia de um terrorista de barba espessa que manda e desmanda na cadeia de comando. Em ambas as organizações, é possível notar características do fenômeno de atuação em rede, algo bastante contemporâneo, e justamente por isso não muito fácil de compreender, ao menos à primeira vista.

Mas voltando à capa da Época. Não consigo ver nela outra coisa que não mais um sintoma do apetite voraz que permeia as redações do país pelo conteúdo apelativo, sensacionalista. Um apetite que tem como objetivo primordial não o esforço pelo retrato fiel da realidade, não o respeito aos princípios elementares do bom jornalismo – mas sim o maior número possível de compartilhamentos no Facebook, a ampla repercussão, que acaba por agregar valor à mercadoria, no caso, à revista.

Pois esse é um dos efeitos da economia de mercado no jornalismo.


iPhone

6 06America/Sao_Paulo novembro 06America/Sao_Paulo 2013

Às vezes ser classe média e apoiador da causa dos oprimidos gera sensações incômodas, contraditórias, possíveis somente em uma sociedade de classes.

Uma delas surge quando você desembolsa mais de um milhar de reais em um smartphone produzido em uma fábrica símbolo da exploração desumana do trabalhador/trabalhadora. É preciso muitos debates internos consigo próprio para se convencer de que o ato de consumir sempre irá alimentar uma cadeia de consumo invariavelmente perversa – e que portanto você não está sendo um hipócrita, apenas está reduzido à figura de um consumidor impotente. Não há tabu maior para um crítico do sistema do que a coerência.

Uma outra surge quando você perde esse mesmo smartphone durante uma manifestação de sem-teto a qual você se dispôs a acompanhar espontaneamente, imbuído do mais puro altruísmo. E o perde justamente após alguns dos manifestantes se voltarem contra você, te hostilizarem, e, por fim, tomarem seu aparelho depois que você correu em fuga e o deixou cair sem querer.

É preciso confessar: uma das primeiras sensações que te assaltam, após o remorso (“R$2.000 no lixo!”), é a raiva. Mas é aí que a convicção ideológica construída há anos precisa entrar em ação com o nobre objetivo de neutralizar o ódio de classe, que tende a despertar nesses momentos. Tem-se então o início de uma batalha interna entre razão e fígado, e a tal da sensação incômoda e contraditória passa a se espalhar pelo resto do corpo.

Não se trata de uma batalha perdida, porém. Já disse que coerência é um dos grandes tabus para um crítico do sistema, e justamente por sê-la, a razão tende a se impor.

Ajuda acreditar, por exemplo, que a pobreza é um grande fator de incentivo para que os seres humanos se tornem violentos. Que ela é ainda mais decisiva se, no meio onde vivem, a desigualdade social seja brutal, com bolsões de riqueza cruzando por savanas de pobreza a todo momento. Que enquanto “perdi um smartphone, quem o tomou está perdendo sua casa.” É um raciocínio que acalma, em mais de um sentido. Elaborar o luto, porém, leva tempo.

Para além de tudo isso, e já enveredando por uma reflexão que pertence ao mundo dos otimistas, ajuda a pensar que talvez não tenha sido só o meu smartphone que me foi subtraído – mas também uma preocupação. Afinal, bastava pôr os pés na rua, ao alcance do “povo”, para que o receio inato do crime ganhasse corpo, apenas pelo fato de se estar com um smartphone de “estirpe” no bolso.

Pois bem. Talvez agora não possa mais atualizar meu Instagram. Mas talvez agora, mesmo subtraído, possa andar por aí um pouco mais despreocupado.