Carta aberta ao Cabra

28 28America/Sao_Paulo outubro 28America/Sao_Paulo 2009

Cabra,

Daqui do lugar do mundo que estou não me sobra muito tempo para escrever. Mas finalmente consegui uma brecha dessa minha labuta forçada a qual sou submetido várias vezes ao dia. Meus patrões são impiedosos e bastante exigentes. Não dão trégua nem aos sábados. Meu único dia livre é o Domingo, que é o dia da missa, e portanto ninguém pode trabalhar, nem se quiser. Mesmo assim, eu sempre que posso dou uma remexida na minha horta, carpo o mato, aro a terra, espraio sementes, sempre bem às escondidas, pra ninguém me taxar de herege ou coisa semelhante. O Pepe sabe o que eu faço, mas só ele, nem uma outra pessoa mais, e o Pepe, bem, o Pepe é de confiança, continua o mesmo bom cabra de nossos tempos de colégio.

Outro dia me peguei lembrando em você. Me lembrei daquela vez que aprontamos com a Joaquina, lembra?, colocamos uma barata morta num envelope e pedimos pro Pepe entregar. Ela, toda metida a gostosona, exibiu pra todo mundo da classe que tinha recebido uma carta, possivelmente de um admirador secreto, dos vários e vários que ela julgava ter. Isso porque ela tinha 13 anos. Acho que nada nesse mundo paga meus risos quando a barata rolou pelo seu colo e fez com que ela caísse pra trás com a cadeira de susto. Inesquecível.

É, mas os anos se passaram, os tempos são outros. Todos nós crescemos e viramos homens e mulheres, e junto vieram várias coisas chatas. Não gosto por exemplo de trabalhar. Ter que me vender pra enriquecer alguém, principalmente canalhas e bastardos como os meus patrões. Por mim seria criança pra sempre, mesmo que isso implicasse em não conseguir alcançar o armário da cozinha ou não poder alugar filmes pornográficos na locadora. Uma pena que ainda não inventaram uma Neverland de verdade.

Cabra, a idade adulta é uma merda por completo, ainda mais na situação que me encontro. Não sei quanto a você, parece que está num alto cargo de uma multinacional né?, mas o meu dia-a-dia é tão desalentador e pobre de espírito, que às vezes me bate uma vontade de jogar tudo pro alto e fugir por uma das trilhas. Só que é muito arriscado, tenho medo de sair daqui. Meus patrões pagam capatazes que ficam circundando a região o tempo todo, dia e noite, com chuva ou sol. Sempre estão parando pessoas que julgam suspeitas, algumas só pelo vão motivo de carregar uma mochila, acredita? É, Cabra, e isso só faz minha angústia redobrar.

E o Pepe, bem, o Pepe ainda me é uma companhia agrádavel, na verdade ele é meu único amigo. Mas não mantemos mais a mesma amizade que tivemos uma vez na infância, aquela da cumplicidade irrestrita, da confiança mútua. Falamos sobre futebol algumas vezes, outras tantas lembramos nossos tempos de beatlemaníacos, mas o papo costuma se encerrar por aí. Basta soar a décima badalada na igreja que cada um se recolhe em sua cabana e parte para o repouso. Aliás, cada vez mais tenho a sensação de que o tempo livre que dispomos no dia só serve para que repousemos para a jornada de trabalho do dia seguinte. Outro dia estava pensando que praticamente não tenho lazer. Pior, o que parece ser meu único lazer é um trabalho!, que é o trabalho na horta, e ainda escondido!

Cabra, cabra, cabra, preciso dar um jeito de sair daqui, me ajude, por favor!

Do seu estimado e fiel amigo,  Robson Crusoe


O baile dos idiotas

26 26America/Sao_Paulo outubro 26America/Sao_Paulo 2009

Coladas à mesa, 6 cadeiras, espalhadas de forma tão anárquica que nem parecia ser uma família, estava mais para um grupo de pessoas que apenas se conheciam, forçadas pela mão de ferro da ocasião a se sentarem próximas umas às outras bem à contra gosto naquele sábado à noite. E de fato era isso mesmo que estava acontecendo.

Os idiotas, de gravata borboleta. As idiotas, de vestidos equivalentes a um salário de empregada doméstica, às vezes até dois salários. Isso sem falar naquelas que exibiam pedras penduradas nas orelhas e nos pescoços que sabe-se lá quantos salários de empregadas negras valiam.

A noite caía, era nublada, não dava pra ver estrelas. Luz, nem do luar, pois, como já disse, estava bem nublado. Luz mesmo só da bola brilhante, que girava sem parar sobre os idiotas dançantes e estacionários. Penso que dentro daquela minha jornada, aquela bola brilhante poderia ter algum significado místico ou subliminar que pudesse me desvendar mistérios ou apontar-me algo futuramente. E acho que acabei encontrando o tal significado. 7 dias mais tarde, li no jornal que no Peru um jovem havia morrido na boate em decorrência da queda de uma dessas bolas brilhantes bem em sua cabeça. Imediatamente, fui atrás do bicheiro do meu bairro. Joguei, e no outro dia estava 90 reais mais rico.

Mas 7 dias antes de estar 90 reais mais rico, eu me encontrava naquela situação deprimente, cercado por idiotas. Acho que nunca tive aquela sensação de ter tantos idiotas ao meu redor de uma só vez, em uma só noite. Fitava por todos os lados, no vão intento de tentar localizar alguém não-idiota pra puxar um papo sobre beatles e assim abstrair-me daquela realidade material pegajosa. Passei uns 40 minutos nesse verdadeiro trabalho de Jó. Estava difícil.

E aí que caminhando por uma das trilhas da área verde, já quase me entregando à desistência, cruzo com uma moça de  um odor bem peculiar – pelo menos peculiar para aquele baile. Eu, que sempre me gabei por ter um olfato bastante apurado, capaz de distinguir uma orquídea de uma rosa de olhos fechados, imediatamente percebi que seu perfume não era como os mais de 80 exemplares de Dolce & Gabbana que já tinha detectado no cardume de fêmas que povoava aquele baile de idiotas. Pelo contrário, muitíssimo contrário, aquele exemplar de cromossomos XX não portava perfume nenhum, pelo menos não os que se vendem em frascos. Exalava um cheiro de gente, carnal, de mulher.

É claro que a tal descoberta captou minha atenção logo de cara. Meu rosto rodopiou sobre o eixo o número de graus necessários para poder acompanhá-la perfeitamente com os olhos, como se uma linha invísivel e imaleável ligasse meu nariz ao dela, enquanto era ultrapassado por aquela andante bem ao lado. Mirava o chão e acho que nem percebeu minha presença ali.

Concluí, pelo perfume natural, que minha noite poderia não estar totalmente perdida. E iniciei minha perseguição implacável, mas só para mais tarde aprender que, assim como um livro não pode ser sentenciado pela sua capa, uma flor também não o deve ser apenas pelo seu cheiro.

Margaridas

As flores de plástico não morrem!


A tradicional caixa de cerveja

22 22America/Sao_Paulo outubro 22America/Sao_Paulo 2009

Em um balcão de apostas de jogo de futebol, sentavam um velho palmeirense, um adulto são paulino e um jovem corintiano. Todos maiores de 18 anos, logo poderiam apostar cerveja. Apostaram.

Eu, que gostava de futebol, só não tinha time fixo, sempre fui de torcer pro campeão, observava aquilo no alto da minha invisibilidade pública. Ninguém prestava atenção em mim. Só me olhavam pra perguntar as horas ou pra me pedir moedas, no caso de mendigos. Coisa que, no começo, foi triste de constatar, mas depois percebi que se tratava de uma benção, pois podia ouvir conversas alheias tranquilamente, como aquela:

– Não é homem pra apostar é? Essa barbona toda pra que então?

– E o senhor já deveria estar na idade de saber que isso é fria.

– Fria?

– Preste atenção em como você fala com os idosos.

– Que isso não presta, que vai dar em coisa errada.

– Largue-se a mão, rapaz! Ja vivi quase quatro vezes mais que você! Sei o que é bom e o que faz mal. Vamos, uma caixa de cerveja!

– Não. O senhor não sabe o que diz.

– Arriégua! Vamô, largue-se a mão!

– Da minha parte, eu aceito.

– Até tu vai entrar nessa? Também já és crescido para saber sobre a armadilha dessas coisas.

– R$ 50,00 não me farão falta.

– ….

– Vamô rapá! Honre essa barba e faça-se homem!

– …tá bom.

E rendeu-se. Décadas mais tarde, se encontrava perdendo 200 reais pra um motoqueiro, já sem mulher, nem amigos, nem família, apenas com seu cachorro, o Tolstoi.


Entrementes

19 19America/Sao_Paulo outubro 19America/Sao_Paulo 2009

“A narrativa segue uma linearidade dúbia. Não raro, narrador e personagem confundem-se em detalhes, no que parece ser uma simbiose de personalidades e pontos de vista distintos. O fantástico e a aparente falta de sentido conferem um caminho libertário para os vôos da imaginação”

“A narrat..a se.ue uma li..arida.e dúbia. Nã. ra.o, na..ador e persona..m c.nfun..m-se em de.alh.s, no que p..ece ser u.a ..mbiose d. per..nalida.es e po..os de vis.a di..intos. O fantást..o e a ap..ente fa… d. s..tido co..erem um. cam..ho li..rtário ..ra a v.os da imagin..ão”

“A n..rat..a se.ue ..a li..arida.e dú..a. Nã. ra.o, na..ad.r e p..sona..m c.nf.n..m-se e. d..alh.., no q.. p..ece ser u.a ..mbi.se d. per..nal..a.es e po..os d. vi..a di..i..os. O ..t..t..o e a ap..e..e fa… d. s..t..o co..e..m um c..m.ho li..rt..io ..ra a v..s da i..gin..ão”

“A n…….a se… ..a .i..ar..a.e ….a. .ã. ra.o, ….ad.r e p..s..a..m c….n..m-.. e. …a.h., no q.. p….e s.. u.a ….i.se d. ..r..nal..a… e ….os d. vi..a ….i..os. O …..t..o e . a…e..e ….. d. s..t..o c…e..m .. c…ho ……..io ..ra a ..s d. i..g….ão”

“. ……..a s…. ..a ……….. ….a. … …o, ….a… . …s…… …..n…-.. .. …a.h.., .. q.. p….. s.. … ….i… d. ..r….l…… e …..s .. v…a ….i…s. O ……… . . a……e ….. .. ……. ….e… .. c….o ……..i. …. a ..s .. ………o”

“. ……… s…. … ……….. …… … …o, …….. . ………. …..n…… .. …..h.., .. … …… … … …….. .. ………….. . …… .. ….a ………. . ……… . . …….. ….. .. ……. …….. .. …… ……..i. …. . .. .. ……….”

Women Running on Beach Pablo Picasso


O universo em desencanto

18 18America/Sao_Paulo outubro 18America/Sao_Paulo 2009

De todas as canções que já havia ouvido até o presente momento, descontando as músicas de vinis, aquela me fora de longe a mais agradável. Destacava-se por sua leveza na harmonia, a audácia da melodia e a inteligência da letra – mesmo tendo sido concebida para ser instrumental. Me lembrei dos afrossambas de Baden Powell que foram letrados por Vinícius a posteriori, os quais teimava em não conseguir aprender os acordes junto ao meu violão amarelado.

Tim Maia 2

Quis perguntar ao meu orixá como pudera aquelas tônicas virem a mundo bem naquela época, num lugar inóspito como o Brasil. Sim, o Brasil é muito inóspito. Simplesmente, não dá pra se viver. São filas, impostos, assaltos. Não dá, ponto final.

Mas a gente acaba vivendo. Meio que por inércia, porque já assentou raízes, tem toda a família, amigos, emprego, esquemas, e vai seguindo. Quando o stress tá no alto, vamos ali na esquina nos distrair com uma cervejinha. E, assim, entre um dia e outro, despretensioamente, acabamos por trombar nossos ouvidos com uma obra daquela qualidade.

Tim-Maia-em-1971

Ah!, e como era bom parar sua existência mundana para ingressar em uma realidade paralela! Bom demais!, precisava daquilo tanto quanto precisava daquele descanso do dia anterior. As portas da minha percepção pareciam estar escancaradas  àquele minuto. Sentia cada nota, cada virada da bateria, de forma tão profunda e insidiosa, que quis sair daquele galpão abandonado direto pra um ateliê, pintar um quadro. Encarnaria Picasso!, seria Kirkeby!, me expressaria como Van Gogh! Tintas, meus senhores, mais tintas, agora!

Quando percebi que a última estrofe se aproximava, ensaiei me aproximar do disco-jóquei para uma conversa. Mas exitei. Ele era um senhor mal encarado, se apoiava no balcão do bar como um sóciopata, e mais um problema era o que menos desejava àquela hora de sexta-feira. Permaneci em minha poltrona, quieto e extasiado, até a última gota daquele entorpecente respingar em meu tímpano. O sóciopata foi então buscar outro cd.

*****

Aquela não fora a primeira vez que buscava primazia por algo que lhe era estranho. Tencionava-se a pensar que fora um erro de cálculo. Um branco nos raciocínios. Detinha o poderio bélico de um batalhão estadunidense na guerra golfo, mas insistia só – e somente só – na habilidade da diplomacia.

Pensou na carreira de promotor, juiz, carcereiro de presídio, mas sabia que não tinha vocação pra nenhuma delas.  Repentinamente, um insight tomou-lhe as ideias. Agora estava evidente demais! Ora, seria um ministro de relações exteriores! Levaria a Igualdade, a Fraternidade e a Liberdade ao mundo todo, mediante sua aptidão para o diálogo e convencimento!  Só precisava agora escolher um país, aprender seu idioma, e planejar os estudos!

Pelo menos naquela noite, a ansiedade sobre o que seria de sua profissão estava morta. Sabia, entretanto, que era novo. Ainda tinha vasta lenha pra queimar antes de começar a se preocupar com sua roupa dentro da sociedade. Voltou-se para seu quarto no hotel, cruzou com a atendente coxa no corredor, e foi direto a sua mochila de coisas básicas. Lá, pinçou seu caderninho de anotações, onde estavam suas anotações da vida inteira. Escreveu:

“EU TENHO UM SONHO! SONHO QUE UM DIA ESTA NAÇÃO SE LEVANTARÁ E VIVERÁ O VERDADEIRO SIGNIFICADO DE SUA CRENÇA – NÓS CELEBRAREMOS ESTAS VERDADES E ELAS SERÃO CLARAS PARA TODOS, QUE OS HOMENS SÃO CRIADOS IGUAIS”

Feliz com o que acabara de profetizar, escanteou seu caderninho de anotações, puxou o lençol pra cima do corpo, e partiu novamente para mais uma jornada ao mundo das coisas fantásticas e maravilhosas e magníficas.

Tim Maia Cantando 3


Isto é um verdadeiro paradigma!

17 17America/Sao_Paulo outubro 17America/Sao_Paulo 2009

Nunca pensei que viajar sobre lençóis pudesse ser tão ou até mais emocionante que experiências da época da infância. Vocês sabem do que estou falando. Aquele quê de inconsequência que nos ronda, norteando nossas ações, ou melhor, desnorteando-as.

Viajar sobre e pelos lençóis me fez lembrar de certo primeiro de abril dos mais dos 29 que já havia vivido até aquele momento. Tinha meus 7 ou 9 anos. Foi quando senti o primeiro frio na barriga de que se tem notícia. Já não era completamente um boneco de ventríloco, guinado por pais corujas babacas, como esse aqui, muito pelo contrário, até aquele dia eu já havia teorizado sobre várias coisas que muitas crianças sequer cogitavam pensar. Já havia feito o clássico questionamento, quiçá o questionamento-símbolo que marca nossa passagem para a Era do Ser Pensante: se Deus criou todas as coisas, quem criou deus? O que me fez lembrar de uma amiga que se indagou sobre isso em voz alta, em pleno churrasco de turma, no alto de seus 18 anos.  Sorte dela que a família tem dinheiro.

Aliás, na tal estória há alguns ingredientes peculiares. Há uma carabina. Há uma jabuticabeira. Há também um lençol branco, meio rasgado. E há uma salva de palmas de 2 pessoas.

Sim, agora já me lembro com certeza, foi em 1989! O Muro de Berlim tinha caído, lembro de ter visto na TV. Aquilo parece que marcou o fim das utopias, para alguns parece que o fim da própria história, dando início à era da unipolaridade, ou ao pós-modernismo como disse outro dia na classe um pseudo-teórico. Falaram também que era um vácuo histórico se formando que atingiria o nosso ideário em cheio.

Comecei a matutar intensamente se o que me causara o tal frio na barriga havia sido o tiro que passou raspando a orelha do Juninho ou a sensação de que o nosso ideário tinha sido atingido em cheio. Desconhecia aquela palavra até então, mas me soava grave. Bastante grave.

Cansado de pensar sem chegar a uma resposta clara, levantei-me, vesti minha boina e saí para um footing na praça central.


A cidade onde os estagiários trabalham de graça

16 16America/Sao_Paulo outubro 16America/Sao_Paulo 2009

Nada era mais desagradável do que descer em uma cidade que não conhecia, que não tinha água encanada, onde os moto-táxis não tinham capacete para o carona e, o pior, onde os estagiários trabalhavam de graça. Pois foi isso que lhe aconteceu. Ainda estava afônico de tanto gritar na última ladeira, aquela ladeira dos diabos, o motorista deve ter chegado a 170 km/h. Gritou tanto que sua voz sumiu já no primeiro segundo de grito. Mas com um tapa na barriga, pôde confirmar: seu diafragma ainda estava ali!

Agarrei o primeiro moto-táxi que apareceu na minha frente e pedi para que ao Sr. Bigode (foi assim que lhe batizei dentro da minha imaginação) dirigisse sem rumo, até chegar no hotel à beira do rio, onde descansaria de verdade pela primeira vez em muito tempo. Como não havia capacete, vesti minha nova boina, presente do velho do ônibus. E parti, me sentindo um forasteiro em campos alhures, onde só a poeira me era familiar. Tive até saudades.

– Aiô Silver!

– (Que raio de pessoa que chama sua moto de Silver?)

– Falou alguma coisa?

Nesse momento comecei a me perguntar se realmente não estava dando valor demais aos meus pensamentos. Comecei a me perguntar se meus pensamentos não transpunham a barreira do limite físico que separa aquela gosma verde-abacate que é meu cerébro, por onde supostamente transita tudo aquilo que nossa mente produz, sejam coisas decentes, vulgares ou incompreensíveis, dos ouvidos de terceiros. Deus do céu, tomara que tenha sido a primeira vez.

A viagem durou cerca de 40 minutos, e, como estava sem dinheiro, disse que deus lhe pagaria em dobro. Ele tomou aquilo como uma profecia, e partiu, para minha surpresa, sem delongas, e de fato o maldito estava certo, horas mais tarde, no carteado, embolsara 200 reais de um pobre aposentado viciado no jogo há mais de anos, já sem mulher, nem filhos, nem amigos,  apenas com seu cachorro, o Tolstoi, batizado com esse nome por causa de um filme que havia visto no mesmo dia que encontrou seu então futuro fiel companheiro na entrada de sua cabana. Eu apenas lamentei.

Guardei minha mochila de coisas básicas, deixei meu passaporte em branco com a atendente coxa do hotel, e, finalmente, pude dormir. E dormi. Muito. Dormi porque precisava demais daquele sono. Daquele descanso, que é quando nossa mente finalmente se desvencilha das preocupações terrenas pra dar lugar às coisas fantásticas e maravilhosas e magníficas.

O dia seguinte lhe reservaria novas experiências.

Sonhou que ficava rico! Rico!!!

Sonhou que ficava rico! Rico!!!


A Viagem em sua parte inicial

14 14America/Sao_Paulo outubro 14America/Sao_Paulo 2009

Iria começar sua viagem, mas esquecia a mochila, com todas as coisas básicas dentro. Teve que voltar, pedir pro motorista dar a volta no balão, em sentido diametralmente oposto ao destino de todos os outros passageiros, inclusive o seu. É claro que a balburdia se instalou, houveram ameaças, mas aquela viagem urgia aquela mochila, e, após um discurso eloquente e emocionado,  logo todos compreenderam aquilo, menos a senhora do manto verde, da primeira fileira, indignada como nunca, ranzinza como sempre. O motorista reduziu da terceira para a segunda, deu a seta e retornou, rumo ao destino solicitado. Era dia de jogo da copa e o trânsito fluía como sangue nas veias de um atleta.

Mas já passava da hora planejada, o sol já estalava no alto, o que queria dizer que seria noite 8 horas mais tarde. E se  a noite, como sabemos, é a uma criança, a madrugada é uma bela jovem recém-saída da adolescência exalando libido e desejo naqueles em busca pelo prazer. E era exatamente isso que queria evitar: a busca pelo prazer, que já lhe causara tantos infortúnios e desatinos. É por isso que, já com a mochila nas mãos, começou a rezar pra tudo quanto é santo, mesmo não acreditando em santo, muito menos num deus – se enterdemos deus como o deus que todo mundo entende. Talvez rezasse por inércia, ou pelo costume de infância que subitamente lhe tomara o corpo, lhe juntara as mãos, e quase o fizera ajoelhar, não fosse o chacoalhar daquela estrada esburacada. Na janela, o concreto dava lugar aos jacarandás.

Ainda rezando, pôs-se a dormir. E sonhou com coisas que jamais tinha sonhado antes. Sonhou com coisas fantásticas e magníficas e maravilhosas, todas coisas que não lhe faziam sentido algum, ao menos logo de cara, mas que depois, anos mais tarde, lhe fariam  o mais sentido de todos os sentidos com os quais se deparou. Tinha um dragão colorido, um arco-íris (como não poderia deixar de ser), e até um vinil dos beatles. Tinha uma bandeira palestina, um violão com uma corda a menos e uma menina de uma bela voz, entoando o belíssimo hino da França, também conhecido como Marselhesa. Mas nem todos esses elementos apareceram assim, de primeira, na mesma tomada. Foi algo mais em plano sequência, começando pelo dragão, que não era mais tão colorido assim, passava pelo abbey road e terminava na última estrofe de um frânces lírico impecável, seguindo a ordem acima destacada.

Acordou meio que subitamente, estava em cima de um rio, ainda no ônibus, é claro, mas em um rio grande de largura, de comprimento também deveria ser, já que não via sua nascente, tampoco sua foz  (depois se arrependera de ter pensado tal besteira, já que ninguém vê a foz e a nascente de um rio, não em uma única viagem de ônibus). Caía a tarde e a noite se aproximava. Isso queria dizer que seu destino também se aproximava. O rio era mesmo grande, estavam na ponte fazia o que?, uns 10 minutos?, e continuavam incólumes e infatigantes na estrada mais próxima do equador em que já estivera.

Foi aí que lembrou da sua mochila.

O ônibus em uma das cinco revistas policiais pelas quais passamos na Trilha da Floresta

O ônibus em uma das cinco revistas policiais pelas quais passamos na Trilha da Floresta

Na mistura da ansiedade por pertear seu destino e do medo da madrugada, ele abriu o zíper da sua mochila em busca de algo que lhe trouxesse paz. Afinal, paz é algo básico pra se viver e aquela era sua mochila das coisas básicas. Revirou tudo, entre bolachas, garrafas d’agua e outros itens mais fantásticos, cujos quais não me cabe descrever, para não correr o risco de ser taxado de rídiculo e/ou louco. Revirou tudo. Mas nada.

Sua ansiedade triplicou, seu medo quadruplicou, precisava de uma calculadora se quisesse quantificar a quantidade de coisas ruins que lhe passavam diante da íris de sua imaginação. Não aguentando mais, ele se dirigiu ao fundo do ônibus, num surto de desespero.

Lá, ele encontrou um velho de barbas brancas, boina marrom, vestuário retrô, tinha uma fala calma e parecia ser mais sábio do que ele, e até, porque não?, do que eu, eu que subitamente me vi também sentado ao lado daquele velho, cujo qual acabou por me tranquilizar um pouco.

Me convenceu de que não precisava ter tanta agonia

Me convenceu de que não precisava ter tantas aflições