Email aberto a um amigo do Rio

26 26America/Sao_Paulo novembro 26America/Sao_Paulo 2009

Cabra, cabra, cabra, como vai? Po, e não se esqueça que meu nome não é Johnni. É Johnny, com ipsilon.

Eis que domingo me encontro curtindo uma seresta, ladeado por meu irmão e meu pai, quando surge um senhor negro no alto da praça, às margens da rua 2, rumando para onde a música emanava. Dois carinhas o escoltavam de perto: um, segurava um cabo de microfone, no melhor estilo assistente de som, e o outro, uma camera filmadora. Devia ser algum tipo de documentário sendo produzido ali. O senhor continuou a passada na diagonal, em direção às mesas onde estava a plateia, passou pelo coreto, e logo começou os vários apertos de mão e abraços que daria e receberia nos próximos minutos, qual uma pessoa que revê amigos de muito tempo. E os dois carinhas sempre no encalço, captando cada momento daquilo tudo.

Depois de cumprimentar mais de uma dezena de senhores e senhoras grisalhos, o tal senhor negro foi chamado para subir ao palco, em um dos intervalos entre uma música e outra. O apresentador então o apresentou, falou seu nome, mas não prestei atenção.

Foi o Marcão, o professor de xadrez, que me explicou quem era aquele cabra por quem todos da praça pareciam nutrir vasta admiração.

– Marcão, sabe quem é aquele cara que tá sendo filmado por aqueles outros dois caras?

– Sei sim, é o meu tio, Dom Salvador. O cara é um dos melhores pianistas de Jazz do mundo, mora em Manhattan e tocava com o Frank Sinatra.

Imediatamente, lembrei-me daquela fábula que você me contou certa vez sobre um pianista rioclarense, radicado nos Estados Unidos, ignorado na cidade natal, até ser entrevistado no Jô Soares. Não me esqueço também do tom de indignação que carregava suas palavras.

Pois então, meu caro cabra, não é que o tal Dom Salvador veio fazer uma apresentação nesta nossa querida terrinha? Aconteceu domingo à noite, lá no Casarão da Cultura, em duas sessões. Infelizmente, não pude ir a nenhuma delas, pois, além do evento ser em um horário e dia em que costumo fazer o clássico programa de assistir dvds piratas na casa do meu pai, os ingressos, gratuitos, já tinham se esgotado fazia tempo. Uma pena.

Bom, de novidade, acho só tinha isso pra te contar. Sobre os demais assuntos que me contara em seu último email, fico só na curiosidade pra saber sobre seu novo quartel-general. Entendo claramente essa sua súbita vontade em ter um canto só pra si. É um fenômeno que já vi acontecer bastante na minha faculdade. Mas, diga-me, o que motiva essa sua escolha? Cansou das dores de cabeça de viver em república? Além do mais, morar sozinho não é mais caro?

Cabra, parece-me então que em duas semanas vossa senhoria já estará de volta. Deste modo, deixemos os temas profundos reservados para a conversa in loco.

Sigamos, contudo, trocando nossos emails recheados de relatos superficiais do dia-a-dia e de divagação.

Forte abraço, Johnny

PS: na verdade fiz a correção na primeira linha apenas para fazer o trocadilho com o nome do filme. Corrigir, desse jeito, é coisa de pedante.


eu queria ser um hiato!

24 24America/Sao_Paulo novembro 24America/Sao_Paulo 2009

Não tem nada mais brochante que chuva de verão aparecendo no inverno – e entendam isso como quiser.

Eu, que já não sou mais eu, sempre me vejo batucando nos limiares dessa vida amargurada e infinita. Já fui pra Bahia, já fui pro Pará, já fui até pra Chuí, ali no extreeeeeemo sul desse brasilzão, mas agora o vendaval ganha corpo, as primeiras gotas batem no telhado e a vontade de dormir, vixi maria, vem que vem nesse meu corpo franzino que deus me deu.

Aí eu durmo. Durmo, me reviro de um lado, pro outro, durmo mais um pouco, até que alguém grite por mim ou que a vontade de urinar ameace explodir minha bexiga. É nesse exato momento que me ponho de pé.

Na vertical, sempre prometo que a partir de então tudo será diferente. Aliás, que a partir de amanhã. Me permito tirar férias diárias, férias de duração de um dia, mas que sempre são proteladas e estendidas, até que chegue o fim de semana, que são férias oficiais e referendadas pela Constituição Federal.

Aí a tranquilidade paira sobre essa minha consciência virgem de crimes e estelionatos.

Ceifar uma parte da sua vida fazendo considerações sobre seu desempenho no dia-a-dia é de um desgosto desses enormes. Diria de um desgosto dantesco, se tivesse acabado de consumir literatura.

É por isso que eu queria ser um hiato. Um desses bem específicos, dessas palavras bem difíceis, que ninguém nunca falou, só viu de relance no dicionário, tipo compleiçoado, criptoanálise, mosaísmo. Vocês sabem o que é mosaísmo?

Na concepção do capital, a arte de procrastinar é algo hediondo, crime bárbaro, repugnante, desprezível, quem comete esse pecado mortal merece as labaredas do nono inferno de Dante. Decorrente disso que surge a pressão paterna e materna, e toda a consequente criminalização da procrastinação, como se fizéssemos parte de um movimento social. Ora essa!

Mas é aí que eu, que já não sou mais eu, sempre argumento que Aristóteles, Sócrates e Platão nunca teriam pensado o que pensaram se não tivessem cultivado o ócio. Certamente todos eles eram adoradores da procrastinação, mesmo que isso não conste nos livros de história, coisa que deveria constar. Mesmo o John Lennon, pra compor, sei lá, Love me do, música que é meio chinfrin, é verdade, mas que alavancou os moleques rumo ao estrelato, mesmo o velho Lennon deveria gozar da procrastinação exacerbada.

(Pausa para um parêntese importante: considerem procrastinação tudo aquilo que não se pode colocar no currículo)

Eu queria ser um hiato pra acabar logo de uma vez com toda essa besteiraiada que pregam por aí nas televisões, nas revistas, nas mesas de bar, pra sumir de vez dessa hipocrisia pegajosa, dosada com muita caipirinha de pinga estragada. Só então é que poderia gozar e gozar, na melhor acepção que um termo como esse pode oferecer.

Doravante, prometo que o amanhã será diferente!

"Galera, é o seguinte: todo mundo sem roupa e ninguém é de ninguém!"


Roda que não gira

20 20America/Sao_Paulo novembro 20America/Sao_Paulo 2009

José ama Maria, que gosta de Thiago, que flerta com Helena, que sofre por Adão, que se arrasta por Patrícia, que sonha com João, apaixonado por Sabrina, que espera por Renato, que chora por Melina, vidrada em Rafael, que padece por Talita, doente por Leandro, que almeja Juliana, que luta por Firmino, que adora Luciana, que se imagina com José.

Eita mundo errado de meu deus!


A heroína dos domingos

16 16America/Sao_Paulo novembro 16America/Sao_Paulo 2009

Nas páginas amarelas, buscava o número daquela pizzaria de super descontos, perfeitos para um carente culinário num domingo à noite. Era tanta fome, mas tanta fome, que a dor que  fustigava sua barriga há mais de hora começava a migrar paulatinamente para a cabeça. E isto lhe causara um nervosismo um pouco fora do comum. Suas mãos tremiam suavemente enquanto tateavam a lista telefônica atrás da salvação para aquela tortura.

Pensou naqueles que vivem diariamente na insegurança alimentar. Esse calafrio adicional só lhe fez angustiar ainda mais.

Lembrava que era com a letra F, F de Florisbela, não, F de Fioretti, também não, só sabia que era F de algum nome desses italianos, típicos de pizzaria. E precisava seguir garimpando aquelas páginas pois não tinha outra escolha: sua geladeira estava vazia, não havia nada aberto àquela hora de domingo, seu amigo mais próximo que lhe ofereceria comida morava a 3 km, inalcançáveis para um ciclista faminto, seus vizinhos o matariam, e a única nota que habitava aquela casa era de 10 reais, guardada em algum lugar dentro da bolsa de seu laptop. Da pizzaria, além da primeira letra, também lembrava seu preço promocional: 9 e 50.

Portanto era aquilo ou aquilo.

O sino da igreja soou uma badalada, olho no relógio, meu deus, era meia-noite!, podiam não entregar mais, acelerou a sua procura, o sino continuava badalando, Farmácia Unimed, Fechadura & Cia, Festas Lesi, pensou em ir pra P, de pizzaria, foi, virou um bolo de páginas, mas não, era melhor voltar pra F, voltou, Fialho Afrânio, Fiat Viviani, o sino continuava badalando, devia estar lá pela décima badalada, quando finalmente encontrou.  Agarrou o telefone com tanta violência que até estranhou a si mesmo: 3-2-8-1-5-7-1-6

– Fiorella, boa noite!

– Boa noite, eu gostaria uma pizza promocional, meia calabreza, meia mussarella.

– Me desculpe, senhor, mas já passamos da meia-noite e não estamos mais entregando.

– POR FAVOR

– Deixe-me ver se o entregador já não saiu.

(…….)

– Ok, ele está aqui ainda. Pode fazer o seu pedido.

 

Naquela noite, tão cedo engoliu o último pedaço de pizza, apagou. Sequer escovou os dentes.


As peripécias de Toninho Pólvora

12 12America/Sao_Paulo novembro 12America/Sao_Paulo 2009

Juarez já advertia:

– Esse moleque quando crescer vai fazer estrago, vai dar uma dor de cabeça danada. Será o carrasco de todos nós, individualistas de merda!

E não é que o projeto de gente que um dia foi Antônio, caçula de uma prole de 6 irmãos, filho da Quitéria, se tornou o destemido e respeitado Toninho Pólvora, o matador de agiotas?

Gostava de bandear pelas bandas de Canudos, terra de outro Antônio, o conselheiro. Respirava o pó das vicinais como quem tem os pulmões de ferro. Seu faro era de morte certa, sua garrucha de dois canos sempre o acompanhava, assim como sua peixeira de corte afiado.

Sentia a brisa do sertão raspar-lhe feito lixa a grossa barba do rosto. Não tinha cicatrizes nem marcas de nascença: sua pele era de um marrom-nordestino que fazia jus à sua hombridade. Matava às segundas, quartas e sextas. Descansava às terças, quintas e sábados. Aos domingos, rezava.

Temia pelo futuro que estava por vir. Mas não o futuro de amanhã, nem da próxima semana, nem do outro mês: temia pelo futuro das décadas. O futuro do cabelo grisalho. O futuro da velhice. Já havia decidido que estouraria seus próprios miolos no dia que a força lhe faltasse para conseguir comida, água e remédio pra si.

Mas enquanto o Sinhô lhe mantivesse de pé, viveria para cumprir a missão à qual fora destinado: salvaguardar os homens de bem desse planeta. O que implicava em eliminar os homens maus.

E foi nesse ritmo de “atira-mata” que Toninho Pólvora foi conquistando sua fama de justiceiro da cidade.

Até conhecer Ana.

Ana das longas mechas douradas, Ana da joviedade sessentista, Ana que conheceu num baile, cantando numa banda de mariachis.

Descobriu então que tinha coração. Que tinha receios, que lhe faltava coragem, sentimento que achava que tinha de sobra até então.

Mas foi. E deu amor.

Toninho Pólvora se enxergava novo homem. Acabara de fundir seu espírito com o de outra pessoa. Estava em completa sintonia, com o sorriso largo, passos flutuantes, como se pudesse alçar voo a qualquer momento.

Estava com Ana.

Ana das longas mechas douradas, da joviedade sessentista, que chegara para preencher todo um vazio existencial que Toninho Pólvora preenchia nos tiros do dia-a-dia. Abandonou a garrucha, trocou a peixeira por um buquê de flores, e todos os dias, ao fim da tarde, presenteava Ana com uma flor diferente.

E era sabido na ciência das flores.

Começou com uma Acácia, deu-lhe Camélias, Dálias, Girassóis, Hortênsias, Margaridas, Rosas, Tulipas. E todo dia era uma surpresa nova, uma reação diferente de Ana, sempre embusteada de alegria, felicidade e afagos de namoro.

Toninho Pólvora nunca se permitiu ficar velho. No dia em que Ana partiu, não estourou seus miolos. Tampouco voltou para a pólvora.

Nessa dia, voltou a ser somente Antônio, o filho da Quitéria.

Love is All You Need

Ana